domingo, 7 de novembro de 2010

Desejo e solidão.

"Se existe uma coisa que me faz ganhar o dia é ler um livro que bagunça minhas entranhas. O último que conseguiu tal feito foi Uma desolação de Yasmina Reza, editora Rocco. É um monólogo de um ancião. Ele fala a um filho que não interage, apenas escuta. Há muitos argumentos para a desolação do personagem. Ele sente-se excluído do futuro e acredita que nada é real, a não ser o momento. Revela que a partir de certa idade, tudo dá na mesma. Que as pessoas gastam inutilmente seu tempo se ocupando. Que depois da juventude trocamos a paixão por ponderação, o que é um crime. E que a única coisa que existe é o desejo e solidão. Foi aí que minhas entranhas acusaram o golpe. Como eu disse antes, o personagem é um velho sem muito tempo de vida fazendo um inventário de suas perdas e ganhos. É nesta contabilidade que sobram apenas o desejo e solidão: tudo o mais lhe parece descartável. Não é uma visão oba-oba da vida, ao contrário, é uma análise cirúrgica, nossa alma a olho nu. Desejamos um lar, uma profissão, ter amigos. São as coisas que nos ensinaram a desejar, projetos socialmente aprovados. Mas o desejo tem vontade própria, é longevo e não se esgota no cumprimento de metas.
Nosso desejo é secreto, e sabemos muito bem que é ele e só ele que nos move.
"Não existe nada mais triste, mais sem graça que a coisa realizada", diz o personagem. Esta deve ser a grande angústia da idade avançada: mesmo tendo tido uma vida intensa e gloriosa, isso não basta. É preciso manter a ilusão pulsando, um alvo adiante, a perseguição contínua, para não sermos sepultados antes da hora. O desejo é um leão. Selvagem, carnívoro, brutal. Não permite acomodação: nos faz farejar, caçar, brigar pelo nosso sustento emocional. O desejo nos transpassa, nos rouba o sono, confunde o pensamento lógico. O desejo corrompe nosso bom comportamento, faz pouco caso da nossa índole irretocável. O desejo não tem pátria nem família, o desejo não tem hora nem tem verbo, o desejo ruge, nosso corpo é a sua jaula. Mas a gente acomoda e anestesia o leão em nós. Resta a jaula vazia. Já nenhum risco nos ameaça, nenhuma surpresa nos aguarda. Uma desolação, chama-se o livro."
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Crônica retirada do livro Montanha Russa - Martha Medeiros.

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