segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O amor tem um pavio apagador - por Betty Milan

Até os anos 1960, a sexualidade devia se realizar por meio do casamento, e a mulher que se entregasse a um homem fora dele era dada como perdida. A virgindade era sagrada. Na prática, isso significava sexo vetado para os namorados ou noivos e obrigatório para os cônjuges. Tratava-se de uma dupla condenação. Na vida de solteiro, sexo limitado aos prolegômenos. Na vida de casado, sexo regido pela obrigação. Não existia liberdade, e foi contra isso que a revolução dos anos 1960 se fez. Ela foi condicionada por duas descobertas médicas: a penicilina, que nos liberou do medo da sífilis; e a pílula, que nos liberou do medo da gravidez. O que caracterizou esse movimento foi a sua amplitude. Era uma reivindicação aberta, divulgada com estardalhaço na imprensa, cujo papel foi fundamental. O movimento libertário, que teve o seu apogeu em maio de 1968, nas ruas de Paris, dividiu as águas em relação ao casamento. De um lado estavam os tradicionalistas; de outro, os ditos "revolucionários", que apostavam na conquista da liberdade e relegavam a união a dois a um plano inferior. Para nós, revolucionários, grupo evidentemente minoritário, o vestido de noiva era um arcaísmo e a meta de se casar e constituir família, secundária. O nosso imaginário era totalmente diferente do imaginário dos nossos pais, que sacralizava a instituição do casamento, favorecendo os amores clandestinos. O que nós queríamos, à diferença deles, era o amor livre, cuja trombeta soprávamos com disposição inigualável. O sexo primava sobre o amor, e a hipocrisia implícita no modelo anterior do casamento era desqualificada. Questionávamos de várias maneiras a fidelidade e pregávamos com fervor a lealdade. Em outras palavras, apostamos tudo no gozo, sem desconfiar que este poderia nos escravizar. Na verdade, escapamos à repressão imposta às gerações anteriores, mas nos tornamos vítimas do nosso ideário. O homem era forçado a ter uma atividade sexual intensa, e a mulher, para demonstrar liberdade, precisava dizer sim a todas as propostas masculinas. Insensivelmente, passamos do sexo proibido ao sexo obrigatório. A aids, nos anos 1980, freou o movimento, impondo-nos o sexo seguro em vez do sexo livre e despreocupado. Com isso, a relação marital e a fidelidade passaram a ser novamente valorizadas. O risco real de mudar de parceiro e contrair o vírus levou à contenção, e o casamento renasceu como uma solução. O seu significado, porém, já era outro, não implicava necessariamente a constituição de uma família. Servia de proteção e pode ser comparado a um refúgio. A fidelidade é o imperativo dos tempos da aids, e, ainda que seja rara, é o ideal dos amantes. Por isso, nos anos 1980, o amor foi entronizado. Ao contrário do que ocorria antes da revolução sexual, o casamento se tornou indissociável da satisfação amorosa. O divórcio impôs outra mudança, porque o amor se quer eterno, mas o desejo sexual é errático, ele muda de objeto. O amor tem um pavio apagador ou, como escreveu Vinicius de Moraes, não é imortal, posto que é chama. O sentimento amoroso, em um duplo processo, hoje sustenta e ameaça o casamento, que pode se dissolver com facilidade. O divórcio litigioso tende a ser evitado e a separação não escandaliza mais ninguém. Tornou-se uma prática corriqueira. Tendemos a não dramatizar a separação, considerando que só a felicidade importa e é preciso alcançá-la como for possível. Essa é a tese de Tudo Pode Dar Certo, o mais recente filme de Woody Allen lançado no Brasil. Não dê atenção à opinião dos outros. Faça da sua vida o que for preciso para ser feliz é o que o cineasta bem-humorado nos diz, fazendo troça dos imperativos do puritanismo americano. Em outras palavras, não se pode mais dizer que o casamento é isso ou aquilo; ele já não é passível de definição. Cada caso é um caso, e as diferenças precisam ser levadas sempre em conta. De verdadeiramente novo, o que existe é a obrigação do respeito entre os cônjuges. Precisamente porque é possível e fácil se separar. Nesse contexto, o problema da separação são os filhos pequenos e adolescentes. Eles precisam fazer o luto do ideal de ser feliz por meio do casamento. Ao mesmo tempo, precisam fazer o luto da presença contínua do pai e da mãe. Queiram ou não, é com os menores que os adultos têm de se preocupar. A evolução dos costumes impõe uma reflexão sobre a dor dos filhos e a melhor maneira de lidar com o sofrimento deles, a maneira mais humana. Casamento, tudo bem. Separação, também, desde que os dois envolvidos sejam responsáveis e não percam de vista o futuro dos próximos. Betty Milan, psicanalista, é colunista de VEJA e veja.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigada pelo seu comentário. Será sempre bem-vindo (a)!