quinta-feira, 15 de julho de 2010

Sem culpa na cama, mas...

"A sexualidade da mulher brasileira virou assunto obrigatório – tão obrigatório que chega a ser entediante", diz Mary Del Priore, numa coluna escrita na Revista Veja em junho, 2010.
"Nos lençóis macios, amantes se dão", como na canção de Roberto e Erasmo. Bonito, não? Mas foi preciso percorrer um longo caminho para que a brasileira visse os "travesseiros soltos" e as "roupas pelo chão". A ruptura só começou no fim dos anos 1960, e se consolidou nos anos 1970 e 1980. Antes, a mulher vivia em um mundo no qual manter as aparências de moça de família era fundamental. Nada de "proceder mal". A felicidade conjugal, do ponto de vista feminino, era ser complemento do marido no cotidiano doméstico, dormir de camisola e fazer amor à meia-luz. Nudez total? Só no escuro. Nada de acrobacias eróticas. Fundamental mesmo era ter bom senso: no caso de traição por parte do marido, "fingir ignorar tudo e esmerar-se na aparência para atraí-lo", como sugeriam as revistas femininas. As mesmas que definiam o bem-estar masculino como o bem supremo. E, para atingir tal bem-estar, qual a receita? Conquistar pelo coração e prender pelo estômago. Jamais discutir por dinheiro. Não se precipitar para abraçá-lo quando começasse a ler o jornal. E não contrariá-lo nem quando quisesse fumar um charuto, antes de dormir com luz acesa. Brigas entre o casal? A razão era sempre dele. Mas, se razões houvesse, ela tinha de resignar-se em nome da tal felicidade. O melhor era usar o "jeitinho": assim o marido cedia. Nada de enfrentamentos ou franqueza exagerada. Afinal, o temperamento poligâmico do homem explicava tudo. Em meados do século XX, continuava-se a acreditar que ser mãe e dona de casa era o destino natural da mulher. Já a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiam a masculinidade. A chegada maciça da pílula anticoncepcional às farmácias, na virada dos 60 para os 70, representou a antessala da chamada revolução sexual. Livre da sífilis, e ainda longe da aids, a jovem podia provar de tudo. O rock’n’roll introduziu a agenda: férias, velocidade e o lema "amai-vos uns sobre os outros". A batida e as letras indicavam a rebeldia diante da autoridade do mundo adulto. Nas capitais e nos meios estudantis, a moça escapava às malhas apertadas da família. Encontros em festas, festivais de música, atividades esportivas e clubes noturnos deixaram-na cada vez mais solta. Saber dançar tornou-se o passaporte para o amor e a tentativa de adaptação a um mundo novo e esforçadamente rebelde. Carícias se generalizavam. Na cama, novidades. A sexualidade, graças aos avanços da higiene íntima, se estendia ao corpo inteiro. Preliminares ficaram mais longas. Na moda, a minissaia começou a despir os corpos. Lia-se Wilhelm Reich, para quem o nazismo resultou da falta de orgasmos. A ideia de que os casais, além de amar, deviam ser sexualmente equilibrados começava a ser discutida por algumas "prafrentex", como se dizia. Era o início do direito ao prazer para todos, sem que a mulher fosse atormentada por se interessar por alguém. A imprensa da época revelava idas e vindas do "casal moderno". As reportagens anunciavam a necessidade de a mulher conhecer a si mesma (e aos homens). Afinal, ela já estava "cansada das angústias que a marcaram por tanto tempo". Quanto à "dificuldade de ser fiel", eis a conclusão de um texto de jornal daquele tempo: "Ora, a imagem da mulher emancipada não suprime a imagem da mulher essencialmente pura, basicamente fiel". Quanto ao homem, sua infidelidade seguia intocável. Havia ambiguidade semelhante em relação ao feminismo: se a mulher deixou de baixar a cabeça para passar a dizer "eu quero, eu posso, eu vou fazer", os primeiros sinais de desprezo pelo movimento não tardaram. A imprensa feminina, reflexo natural da sociedade, continuou a investir na figura da mãe e da dona de casa. Só que, agora, angustiada. Questionada pelos filhos e ameaçada pelas mais jovens, seu horror era "ser trocada por duas de 20". Multiplicavam-se as colunas do gênero "como salvei meu casamento". Para a liberada que aderisse à revolução sexual, não faltavam informações para "entrar no fechadíssimo clube das cabeças que pensam e decidem". Porém, para entrar no tal clube, era preciso ter cabelos esvoaçantes e corpo sedutor. O casal continuava a ser o ponto de referência. E, como antes, o homem era o juiz que avaliava a mulher. Ele era o seu objetivo e razão de ser. E, como antigamente, o "medo de se amarrar" continuava o mesmo. Os argumentos científicos brotavam para ilustrar as diferenças: "Ele tem, biologicamente, o instinto da conquista desde os tempos pré-históricos (...) já a maternidade dotou a mulher de uma estrutura emocional passiva". Início do século XXI: graças à pílula, o sexo não é mais uma questão moral, mas de bem-estar e prazer. O aumento de divórcios não impede a mulher de recomeçar. Por isso, seu álbum de família contém novos atores: enteados, meios-sogros, produções independentes. Ocupando cada vez mais os postos de trabalho, ela busca o equilíbrio entre o público e o privado. Entre parceiros, surgem regras e práticas mais igualitárias. Graças à independência financeira, ela não fica mais casada por conveniência, dividida entre o desejo de vários parceiros sexuais e a estabilidade necessária aos filhos. Seu percurso aponta para conquistas, mas também armadilhas. Se a profissionalização trouxe independência, trouxe também stress e exaustão. A desorganização familiar onerou, sobretudo, os mais indefesos: as crianças. A tirania da perfeição física empurrou a mulher não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação. O nu, na mídia, despiu seu corpo em público, banalizando-o. Uma estética voltada ao culto da boa forma, fonte de ansiedade e frustração, levou a melhor. No início do século XXI, "liberar-se" tornou-se sinônimo de lutar, centímetro por centímetro, contra a decrepitude. A mulher continua submissa. Agora, não mais ao marido, mas à publicidade. E não há prisão pior do que aquela que não permite mudar nem envelhecer junto com o resto da população. Nas últimas décadas, ela participou de outro movimento: o que separou a sexualidade, o casamento e o amor. Foi o momento de transição entre a tradição das avós e a sexualidade obrigatória das netas. Ninguém mais quer casar sem "se experimentar". Frigidez, nem pensar. "Ficar e se mandar" é a regra. E só se fala em "sexualidade plural". Separada da procriação, sem culpa, ancorada pela psicanálise e exaltada pela imprensa, a sexualidade da mulher brasileira se tornou assunto obrigatório. Tão obrigatório que chega a entediar. Resta perguntar quem vai lavar, passar e arrumar os tais lençóis macios da cama. Os historiadores de amanhã dirão.
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O texto é de Mary Del Priore, historiadora, e é autora de História das Mulheres no Brasil (Editora Contexto).

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